Quando a alma desanima

maio 16, 2018


Facilmente concordamos sobre a força dos motivos da Esperança cristã; mas o demônio se serve de muitos pretextos para enfraquecê-los, impedindo a alma desanimada de aplicar a si mesma esses motivos.Sendo naturalmente preguiçoso, o homem teme o esforço. Uma vez que se entrega a Deus, desejaria fruir da felicidade do seu estado sem que isso lhe custasse muito. Esquece‑se de tudo o que Jesus Cristo disse: Só os que se fazem violência é que arrebatam o céu (Mt 2,12). Estreita é a porta e apertado o caminho que conduz à vida (Mt 7,14). Se alguém quiser ser meu discípulo, renuncie a si mesmo, tome a sua cruz a cada dia e me siga (Lc 9,23). Não presta atenção ao fato de que Jesus Cristo não quis entrar na Sua glória senão pelos seus sofrimentos (Lc 24,26); que só conduziu ao céu os Santos pelas cruzes, pelos combates, pelos sacrifícios, pela renúncia às suas paixões, à sua vontade.

O Céu é uma recompensa: cumpre merecê‑la pela preferência que damos a Deus, à sua vontade santa, sobre aquilo que temos de mais caro, uma vez que Deus exige a renúncia a nós mesmos. É, pois, um princípio certo: e S. Paulo no‑lo declara alto e bom som da parte do Senhor: Ninguém será coroado se não tiver legitimamente combatido até o fim (2Tm 2,8). Pretender a coroa da Justiça sem combate é raciocinar contra os princípios da Fé; esperar por combates que não exijam esforço é ir contra as luzes da razão.

Não ignoramos o que Deus exige; e é disto que o demônio tira pretexto para desanimar uma alma cristã, servindo‑se da preguiça, tão natural ao homem, para desviá‑lo do trabalho necessário à salvação. Não custa nada seguir as nossas inclinações naturais: o que custa é reprimi‑las. O inimigo do homem não encontra, pois, grande dificuldade para nos fazer escolher o primeiro partido.

Para isso, ele traça um quadro impressionante das dificuldades que encontraremos no serviço de Deus, do constrangimento contínuo em que seremos obrigados a viver, e sobretudo dos combates que incessantemente teremos de sustentar contra nós mesmos. E, por outro lado, impede que vejamos a paz do coração de que se goza quando se obedece a Deus, as sólidas consolações que encontra­mos, no sofrimento, pela esperança das recompensas. Em vez disso, mostra-nos em toda a sua extensão a nossa fraqueza, recorda-nos as quedas que já tivemos apesar das boas resoluções, e não nos deixa perceber a misericórdia de Deus e o seu braço Todo‑Poderoso por cujo socorro sempre triunfamos.

Eis como evolui essa disposição da alma. Compenetrada da sua fraqueza e das dificuldades da tarefa, em vez de dizer com o santo rei Davi: Ainda que exércitos inimigos se levantassem contra mim, eu não temeria, ó meu Deus, porque estais comigo (Sl 26,5; 22,4), ela cai no abatimento. Esse sentimento não lhe permite ver senão fracamente o socorro do Céu; ela conta pouco com ele; quase não ousa pedi‑lo; talvez mesmo receie obtê‑lo, para não ter que renunciar às suas inclinações, que ama. Nesse estado, não se acreditando capaz das necessárias renúncias, ela nada ou quase nada ousa empreender para se vencer. A primeira queda confirma‑a no seu modo de pensar, de que não poderá con­seguir vencer‑se, e de que é preciso aguardar um tempo em que as suas paixões já não sejam tão vivas.

Assim, tudo se lhe torna difícil: o aborrecimento, e o espírito de independência em relação aos seus deveres, apoderam‑se da sua mente e do seu coração, e lhe tornam esses deveres extremamente penosos. Os exercícios de piedade, ela os omite, ou se desobriga deles com tanta negligência, que não encontra neles o consolo e o auxílio do seu Deus, a Quem ela esquece. A dissipação de espírito e de coração sucede ao espírito interior que a fazia agir; ela abandona o bem que praticava; resiste às graças, aos remorsos: desvia‑se dos bons pensamentos; já não segue senão as suas inclinações, os seus caprichos, o seu temperamento, nos quais não acha obstáculo. Apesar das inquietações que, por misericórdia, Deus lhe proporciona nesse estado de preguiça e de tibieza produzido pelo desânimo, ela ainda gosta mais dele do que de se constranger por amor de Deus. É o ponto a que o inimigo da salvação queria conduzi‑la: queria impedi‑la de pensar, de trabalhar por sua salvação, e o consegue por essa via.

Estes detalhes, talvez um pouco longos, nos ajudarão a conhecer melhor o plano de ataque do inimigo, e nos permitirão preparar mais facilmente um plano de defesa que lhe inutilize os esforços.

Compreendo que uma alma que se detém nas dificuldades que podem encontrar-se no serviço de Deus, e que as encara todas ao mesmo tempo, e por uma longa vida, possa ficar assustada com elas. Mas, na verdade, não é dessa forma que essas dificuldades se apre­sentam; não precisamos suportá-las e combatê-las todas ao mesmo tempo, mas sim, ora uma, ora outra, conforme as ocasiões. Se há umas que voltam com frequência à carga, outras há que só raramente se apresentam. Devemo‑nos firmar contra as primeiras em particular, e premunir‑nos contra as outras pelo exercício frequente do amor de Deus. Seria preciso ter uma anormal fraqueza de ânimo, para não ousar resistir a um inimigo que ataca sozinho, e cuja única força é, muitas vezes, aquela que ele tira da nossa fraqueza. Se trememos diante dele, ele nos esmaga. Mas se, invocando a proteção de Deus, lhe resistimos, ele não se aguenta muito tempo, foge, desaparece por longo tempo.

Nunca encaremos em conjunto as dificuldades que só separada­mente se apresentam. Uma alma, em cada momento, só tem que responder pela ação que então pratica. Ocupar‑se, nesse instante, com possíveis dificuldades futuras que nem se sabe se de fato virão, é atormentar‑se desnecessariamente; é ir ao encontro da tentação, e da tentação mais desarrazoada; é armar ciladas a si mesma; não é ser tentada, é tentar‑se a si mesma. É sempre contra a razão pro­porcionar‑se antecipadamente, na sua imaginação, males que talvez nunca se tenha ocasião de experimentar. A cada dia basta a sua pena (Mt 6,34); é contra a Religião e contra a Prudência cristã expor‑se a si mesmo à tentação.

Portanto, se uma alma se faz violência para agradar a Deus, na espe­rança da recompensa; se, a cada pena que experimenta, só presta atenção a essa, para fazer dela um santo uso, suportará todas sucessivamente, e mais facilmente, e com maior mérito, pelo socorro do Senhor.

Suponhamos que uma alma religiosa sente repugnância no incô­modo, no constrangimento que a obediência e a regularidade pedem. Se, ao experimentar a força desse sentimento, ela o encarar pensando em toda a sua vida, ficará perturbada, desconcertada, desanimada. Mas, se o encarar só por um dia, por um meio dia, ou mesmo para cada ação, à medida que esta se apresentar, já não o achará tão difícil de praticar. Muitas vezes, a dificuldade é apenas momentânea, e deixa de existir uma vez que a enfrentamos com determinação.

Muito nos enganamos se pensamos que a dificuldade que encontra­mos em nos violentar para cumprir nossos deveres e agradar a Deus, durará para sempre com a mesma vivacidade e com a mesma impres­são que sentimos no começo. A experiência, fundada até mesmo em razões físicas, ensina‑nos que, à medida que praticamos muitas vezes uma ação, ou que, pelo socorro da graça, nos acostumamos a agir por bons motivos, contraímos o hábito de assim fazer, e passamos a fazê-lo cada vez com maior facilidade. O sofrimento diminui sempre mais, e afinal cessa quase inteiramente. Obriguemo‑nos durante al­gum tempo a fazer uma ação com fidelidade e com exatidão quanto ao tempo e ao lugar, e em breve a faremos quase sem perceber, e a motivação religiosa se apresentará por si mesma; a tal ponto que essa facilidade se torna, às vezes um motivo de aflição para certas almas que, sem razão, imaginam não ter merecimento onde não têm dificuldade, e onde já não precisam fazer nenhum sacrifício. Elas se esquecem de que é o motivo sobrenatural, sob a influência da graça, que dá o mérito às nossas ações, e não simplesmente a dificuldade que nelas achamos.

Aliás, a Religião nos ensina que o Senhor recompensa a fidelidade que aplicamos em nos vencer por Ele, e recompensa‑a com graças que tornam não somente fáceis, mas também doces, as dores que suportamos; ensina‑nos também que, ainda que essas dores se façam sentir por mais tempo, Ele jamais permitirá que a provação seja superior às nossas forças, auxiliadas pela graça que Ele nos prometeu e que sempre podemos obter pela oração. Contemos com essa promessa, já que ela não pode ser falsa.

Nunca encaremos a incerteza da perseverança sem pensar nas pro­messas que Deus nos fez, quer quanto aos socorros, quer quanto às recompensas, e esta reflexão bastará para nos tranquilizar e nos reanimar.

Por J. Michel, “Tratado do desânimo nas vias da piedade”
Fonte: https://www.paraclitus.com.br/espiritualidade/fe/quando-a-alma-desanima


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